É a parte quase engraçada da história, eu acordo de
manhã depois de ter dormido apenas três horas, tomo
banho, coloco uma roupa e vou até o supermercado que fica a meio quarteirão aqui de casa, e então pego
um carrinho, dou bom-dia pro segurança, escolho as
marcas de minha preferência, peso as verduras, pago a
conta e saio de lá sem ninguém desconfiar de que sou
um fantasma, de que sou uma fraude, de que não sou
eu que estou ali, estou apenas levando meu zumbi pra
passear, pegar um ar e cumprir certas obrigações domésticas, já que algumas pessoas aqui em casa ainda
precisam se alimentar, enquanto eu as assisto comer,
abismada com a fome do mundo. Uma sorte eu ser dessa época, o século dos individualistas, ninguém mais se ninguém mais se
atém ao rosto dos outros, quem saberia dizer a cor dos
olhos do seu melhor amigo? Um exército numeroso de
invisíveis, e eu me valho dessa invisibilidade para sair
de casa como se eu fosse uma mulher em total domínio
dos meus atos e sentimentos, uma criatura confiável
que não vai estacionar na vaga para os paraplégicos nem
esquecer de trancar a porta do carro e que vai até sorrir
de volta para a conhecida que lhe deu um cumprimento quando se cruzaram no corredor dos enlatados. Tudo
bem?, ela me pergunta. Tudo bem. Hoje está um dia
assombrosamente calmo e eu quase lembrei de como era a vida quando eu estava viva.
Martha Medeiros
Do Livro Fora de Mim de Martha Medeiros ( da pagina 23 à 24)
Fontes:
3 comentários:
Texto massa!!
beijkos
Pois é... Que capacidade ela tem de descrever o que nos rodeia, né?
É isso mesmo cara Elaine:
Nós e os nossos fantasmas...
Postar um comentário